Resumindo...

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Se sou feiticeira, logo eles ficarão sabendo...


Dormir é morrer, eu sei, mas não consigo me manter acordada. Antes morrer do que ser capturada. Antes morrer congelada junto desta árvore do que ser enforcada...

Movimento atrás da cortina de neve em torvelinho, uma forma ganhando corpo, cinza contra cinza. Pensei que fosse um cão, mas não era um cão, era um lobo, uma fêmea. Patas grandes subiam e desciam, levantando tufos de neve, alerta aos menores movimentos parou de saltar e avançou... eu entendi, eu era a caça, ela tinha vindo por minha causa...

Fitou-me com olhos amarelos, a cabeça inclinada para um lado, como se estivesse decidindo se me matava agora ou mais tarde. Tive vontade de que fosse agora. Fechei os olhos pronta para a mordida, não houve mordida, ela se pôs a lamber meu rosto sem parar derretendo o gelo das minhas bochechas... eu era capaz de sentir de novo.

Ela procurava me dizer que estava na hora de sair dali, que eu deveria segui-la, levantei-me mas meus pés tinham perdido a sensibilidade, não me sustentavam. A neve caía mais de pressa, achei que ia me deixar ali, estava anoitecendo. Mas ela foi cavando cada vez mais fundo abrindo um covil na neve e quando ficou satisfeita veio até mim e começou a me puxar...

Ela se enroscou ao meu lado, de costas pra neve que caía. Encostei o rosto em teu pelo macio e claro de seu peito e pescoço. O calor dela me deu vida, e esperança.

Acordei sozinha num casulo de gelo, surpresa por ter acordado. Aonde tinha ido? Sem ela eu morreria, "salvar- me e depois me abandonar" a idéia me abalou cruelmente.

Ouvi uma voz "tenha mais fé, não duvide de que eu a amo. O fato de não poder estar com você não significa que a ame menos" depois ouvi outra coisa, que não era do mundo dos espíritos, achei que fosse ela, mas nenhum lobo de passo leve faria aquele som... eram passos de um homem, achei que fosse sonho mas os braços que se estenderam na minha direção eram bem reais.

"Ela cuidou bem de você, A noite passada meu avô sonhou que encontrou uma loba na floresta. Levantou antes do amanhecer. Nós a encontramos esperando na clareira sob a caverna. Virou-se esperando que a seguíssemos, e nos trouxe até você."

" Como é possível? Ela impediu que eu congelasse . Ficou aqui comigo. Não entendo."

"Há muita coisa difícil de entender."

Estava gelada até os ossos e nem mesmo as peles que o índio trouxera contribuíam para me aquecer, mas o embalo da viagem foi me acalmando. Quando acordei estava anoitecendo, surgiam as primeiras estrelas e estávamos ao pé de uma grande penhasco.
Estava atenta ao som trazido pelo vento, um uivo respondido por outro, ouviu-se outro ainda mais próximo, Fiquei paralisada quando uma forma cinzenta surgiu na borda da clareira. Era uma loba, e grande, percebi que a conhecia...

Eu não precisava de explicações, encarei-a e seus olhos amarelos piscavam e brilharam de reconhecimento. Encarei-a e Gaio não precisou me dizer quem ela era. Era minha mãe. Exatamente como o espírito de minha avó poderia se transformar em lebre, o de minha mãe tomara a forma de uma loba para me salvar mais uma vez da maldade dos homens.
Inclinei a cabeça e proferi meus agradecimentos, arrependida de ter duvidado dela.

Ela soltou um último ganido leve, virou-se e sumiu nas sombras da floresta para junto de outros Grandes Espíritos...

Já na caverna, os tambores começaram devagar e rápido, devagar e rápido. Como meu sangue e meu coração e de repente a musica cessou, o mundo parou de girar e eu deixei de sentir frio.

(Trecho extraído do livro Sangue de feiticeira - Célia Rees)